sábado, 14 de maio de 2011

Leia o excelente artigo “Agenda responsável”, de Fausto Pereira dos Santos*



14/5/2011




Agenda responsável

Fausto Pereira dos Santos*




Situação da área, com articulação ineficiente entre os setores privado e público, revela a necessidade de conformar um Sistema Nacional de Saúde no Brasil


 




 
O sistema de saúde brasileiro historicamente conta com a participação majoritária do setor privado, inicialmente com as Santas Casas, e a prática médica liberal. Só no século 20 tivemos o Estado no financiamento e organização da assistência médica. Inicialmente como seguro social vinculado ao mundo do trabalho, na Constituição de 1988 foi instituído como sistema universal e de responsabilidade do Estado. Paradoxalmente, esta mudança não foi acompanhada por uma proposta de financiamento correspondente nem por uma política de regulação do setor privado que definisse suas responsabilidades no sistema de saúde. A Lei 8.080/90, Lei Orgânica da Saúde, não trata do setor privado. Assim não se conformou no país um sistema nacional, mas o Sistema Único de Saúde, o SUS, que, apesar do nome, refere-se somente ao sistema público com sua rede privada contratada complementarmente.

A falta de definição de um arranjo institucional público e privado possibilitou o crescimento de um setor privado forte econômica e politicamente, desarticulado e concorrente com o setor público. Por outro lado, a ausência de um financiamento estável, combinado com um arranjo institucional complexo e com problemas de gestão, conformou um sistema público com notáveis avanços, mas com lacunas na sua operacionalização. Os inegáveis avanços na inclusão gerada pela implantação do SUS, mesmo que ainda parcial, e os resultados concretos nos indicadores de saúde acabam diminuídos pelas críticas ao sistema e a falta de sua defesa pela população brasileira, notadamente os setores médios da sociedade.

O setor saúde representa cerca de 8% do Produto Interno Bruto (PIB) no Brasil, o maior entre os países do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), e só menor que os da Argentina e do Uruguai, na América do Sul. Em relação ao chamado mundo desenvolvido, é bem menor do que o do Canadá e o da Austrália. Dos sistemas universais, é um dos que têm menor participação de gasto público na relação do total de gastos em saúde no país. No último dado do Sistema de Contas Nacionais (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas/Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) a relação foi de 38,8% de gasto público para 60,2% de gasto privado. Se incluíssemos a renúncia fiscal como gasto público, ainda teríamos o gasto majoritariamente privado.

A renúncia fiscal, combinada com o gasto do setor público (três poderes) com o pagamento de serviços de saúde privados para os servidores públicos, acentua a iniquidade do acesso e do financiamento do sistema de saúde. A União, os estados e municípios (Executivos, incluindo as estatais, Judiciários e Legislativos) pagam ou auxiliam no pagamento de planos de saúde para mais de 8 milhões de pessoas. Ainda relacionado ao financiamento, grande parte dos estados não cumpre a Emenda 29, significando menos recursos para o setor público.

O cidadão brasileiro tem três alternativas para acessar o sistema de saúde: a) pelo SUS, em unidades públicas ou contratadas, por exemplo, os hospitais filantrópicos; b) por meio de pagamento direto aos prestadores de saúde privados, sejam hospitais, clínicas ou profissionais liberais; c) pelo sistema de saúde suplementar, contratando assistência à saúde de operadoras de planos de saúde. As formas descritas acima dizem respeito à assistência à saúde. As demais ações de saúde são universais, portanto, utilizadas pela totalidade da população. Portanto, o sistema de saúde brasileiro é formado em grande parte por sistemas paralelos, concorrentes e duplicados. A competição se dá pela rede prestadora, sendo que as melhores estruturas estão, em geral, na saúde suplementar. Os hospitais privados contratados e públicos estatais, em sua maioria, estão defasados tecnologicamente.

Esse arranjo traz algumas consequências: em várias localidades, existe excesso de oferta no setor privado e baixa oferta no setor público, principalmente na média complexidade; o sistema tem apresentado uma iniquidade de acesso aos medicamentos, transplantes e outros procedimentos, já que os pacientes oriundos da saúde suplementar acessam estes serviços mais rapidamente, inclusive no setor público, pois conseguem consultas e exames pré-procedimentos mais rapidamente; a integralidade só ocorre no SUS, o sistema privado não oferta, por exemplo, medicamentos ambulatoriais, excepcionais e a maioria dos transplantes. Temos hoje cerca de 23% da população com planos de saúde. O setor movimentou cerca de R$ 68 bilhões em 2010, mesma ordem de grandeza do orçamento federal. O gasto per capita da saúde suplementar é praticamente três vezes o do SUS.

Apesar dos avanços do SUS como projeto de reforma do Estado, com práticas inéditas, como a transferência fundo a fundo ou os espaços intergestores de pactuação das políticas, a organicidade do sistema não foi atingida com os pactos negociados até hoje (NOB, Noas, Pacto pelo SUS), sem a consequente contratualidade formal entre os gestores das várias esferas. Isto se reflete numa frágil responsabilização dos gestores, tanto na definição dos papéis, quanto no acompanhamento e avaliação das ações. A regulação e o controle por parte dos entes federados ainda são insuficientes e existe possibilidade de transferência de responsabilidade, diferentemente do que ocorre com as outras políticas públicas, como segurança e educação.

Desafios e propostas

Algumas questões devem ser destacadas como problemas na gestão cotidiana do SUS:

·      Gestão de incorporação de tecnologia desordenada e com baixa regulação pública, levando a um aumento de custos do sistema e ampliação da iniquidade alocativa.
·      Insuficiência de estruturação das redes de atenção, locais e regionais, com baixa potência da atenção primária como ordenadora das redes e definidora dos fluxos facilitadores para os usuários.
·      Baixa capacidade gestora sobre os serviços privados contratados e conveniados. Ausência, na maioria dos casos, do comando único previsto na Constituição.
·      Concorrência entre os serviços e forte hegemonia do aparato hospitalar sobre os outros serviços, com grande drenagem de recursos para aquele nível.
·      Sistemas de informação e tecnologias insuficientes para dar conta do acompanhamento da vida sanitária dos usuários.
·      Oferta insuficiente de inúmeros procedimentos, comprometendo os princípios da universalidade e integralidade.
·      As ações de promoção à saúde e prevenção de agravos não ocupam um papel central e são poucas as experiências concretas de articulação intersetorial com outras políticas públicas.

Algumas proposições para enfrentar esses desafios:
·       Regulamentação da Emenda 29 em um formato que agregue novos recursos ao sistema na esfera federal e que obrigue o seu cumprimento pelos estados, com a definição de gastos com saúde.
·       Definição dos papéis do público e privado, conformando, assim, o Sistema de Saúde Brasileiro. Algumas iniciativas poderiam iniciar o rompimento com a atual segmentação dos sistemas:
·       Organização de um sistema nacional de transplantes, que hoje já conta com fila única, totalmente público e financiado pelo setor público e privado.
·       Organização de um sistema de urgência e emergência, inclusive pré-hospitalar, com financiamento e regulação pública e privada.
·       Reordenamento da regulação do funcionamento das redes da saúde suplementar com garantia de acesso e redefinição dos papéis em relação ao setor público, a partir da elaboração de um plano de saúde para os sistemas locais e regionais, principalmente nas regiões Sul e Sudeste, com alto percentual de cobertura de planos privados de assistência à saúde. Esta articulação se daria nas redes de especialidades, de urgência e de temas como a assistência obstétrica e neonatal, crianças, idosos, saúde mental, apoio diagnóstico e terapêutico.
·       Encontrar formas para superar o engessamento legal das gestões. Importante destacar que o provimento dos principais sistemas universais do mundo se dá por meio de arranjos públicos e privados. Por isso, as experiências de parcerias público-privadas (PPP), fundações estatais de direito privado e empresas públicas devem ser agregadas ao mosaico de possibilidades de gestão das organizações mais complexas do setor público de saúde.
·       Ampliação de programas de promoção à saúde e prevenção de agravos de relevância e impacto na saúde pública, com integração com outros setores e políticas públicas como educação, assistência, cultura, abastecimento, trânsito, transporte, saneamento, habitação etc.
·       Fortalecimento da atenção primária como centro das redes de atenção, com a definição de uma política para fixação, remuneração e contratualização de responsabilidades das equipes e da população referenciada, com seguimento de protocolos e gerenciamento de casos crônicos e de condições de risco.
·       Redefinição da rede hospitalar brasileira, com contratualização das unidades e definição de seu papel nas redes. Elaboração de um projeto de modernização tecnológica, de gestão e de sustentabilidade financeira do custeio da rede hospitalar, considerando a sua dupla vinculação, setor público e privado, com a ampliação de leitos de retaguarda para as portas de entrada das urgências, especialmente de terapia intensiva e clínica médica.
·       Estruturação de projeto para as filas de procedimentos eletivos ambulatoriais e hospitalares, com financiamento específico. Eleição de procedimentos que teriam tempos máximos de realização em todo o sistema nacional, como biopsia de próstata, biopsia de mama, ultrassonografia, cirurgias eletivas, etc.
·       Redimensionamento dos programas de controle das doenças de alto impacto sanitário, emergentes ou negligenciadas, como dengue, malária, tuberculose, hanseníase, Aids.
·       Reestruturação do aparato formador de recursos humanos para a saúde, incluindo a formação técnica, graduação e pós-graduação, otimizando os recursos já alocados e regulando as profissões da saúde de acordo com as necessidades do sistema de saúde.
·       Articulação de uma política nacional de assistência farmacêutica, com a junção dos esforços e recursos hoje alocados na assistência do SUS (lista básica de medicamentos, farmácia popular, papéis regulatórios da Anvisa e Câmara de Medicamentos). Inclusão nesta política dos imunobiológicos e hemoderivados, na busca da autossuficiência nacional e independência tecnológica.
·       Ampliação das transferências fundo a fundo em contas únicas e baseados em contratos de ação pública para a organização dos sistemas locais e regionais.
·       Reavaliação dos mecanismos de transparência, participação popular e controle público das ações do sistema de saúde, ampliando os mecanismos de controle social.

A definição dos papéis do setor público e do setor privado de saúde na conformação de um Sistema Nacional de Saúde é uma agenda que se impõe para que possamos discutir integralmente a saúde que queremos dispor aos brasileiros e de que maneira vamos financiá-la.

*Fausto Pereira dos Santos é médico sanitarista, doutor em saúde coletiva pela Unicamp, ex-diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e ex-secretário municipal adjunto de Saúde de Belo Horizonte.



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