domingo, 2 de janeiro de 2011

Legitimidade da Anvisa para a regulação sanitária




10/02/2010


Pedro Ivo Sebba Ramalho*

Dez anos após sua criação, o novo sistema regulatório brasileiro ainda é alvo de intenso debate. Inspiradas na experiência norte-americana, as agências reguladoras brasileiras, produtos da reforma regulatória da década de 1990, têm ensejado discussões na Academia, na imprensa e no Congresso Nacional sobre o papel do Estado na regulação da economia. Questionamentos sobre a legitimidade das agências são frequentes e refletem o ineditismo desse arranjo institucional frente à estrutura e tradição estatais de nosso País.
Pode-se até mesmo dizer que as dez agências reguladoras federais se revezam na posição de vedete das críticas da opinião pública. Com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não é diferente. A sua competência normativa tem sido questionada desde a sua criação, em 1999, cada vez que a agência coloca em consulta pública ou aprova uma resolução polêmica, ou que adota novas regras para os vultosos setores econômicos que regula.
A Anvisa surgiu para ocupar o lugar da antiga Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde em um momento em que houve agravamento da crise de confiança na vigilância sanitária, ao final da década de 1990, quando se noticiava a circulação de grande volume de medicamentos falsificados no país. Foi criada logo após as três primeiras agências - Aneel, Anatel e ANP - e é considerada uma agência de segunda geração, pois atua na regulação social. Apesar das diferenças nos processos políticos de criação e da diversidade de desenhos institucionais, as agências reguladoras brasileiras seguem um mesmo modelo geral, fruto do objetivo comum da reforma regulatória, apontado para os mercados do setor da infraestrutura.
Mas, diferentemente do que querem alguns, a regulação estatal da economia não se destina somente à promoção do desenvolvimento e ao fomento ao crescimento econômico, obtido por meio da necessária criação de ambiente regulatório estável para os negócios e investimentos no país. Destina-se, também, à correção das falhas de mercado para garantir segurança e bem-estar à população. No setor de saúde, as principais falhas de mercado são a assimetria de informação, a imprevisibilidade dos problemas de saúde e as externalidades negativas (consequências não esperadas ou previstas pelo consumidor). Todas essas falhas são observadas pela Anvisa em sua atuação regulatória.
Ora, lembre-se que a economia da regulação se subdivide, classicamente, em três grandes temas: a política antitruste; a regulação econômica (que geralmente envolve monopólio natural e economias de escala); e a regulação não econômica. Nesse último caso, o Estado intervém com vista a prevenir, reduzir ou remediar danos sociais decorrentes dos riscos gerados no processo de produção e consumo. São os evidentes casos do setor saúde e do meio-ambiente. As funções tipicamente desempenhadas pela vigilância sanitária, ao longo do tempo e cada vez mais, se enquadram de maneira coerente com essas atividades regulatórias estatais.
É necessário considerar também que a regulação estatal envolve o conjunto de atividades de regulamentação e normatização; de permissão, autorização e licença; de definição de tarifas; de fiscalização e controle; e de imposição de sanções e penalidades. Dessa forma, todas as agências reguladoras federais brasileiras, entre outras estruturas da administração pública, são entidades com poder normativo para atuar na regulamentação técnica em sua área de abrangência, na regulação econômica e social, em função de sua legitimidade derivada do conhecimento vertical e especializado.
Em setores nos quais existe particular complexidade técnica e frequente evolução tecnológica, o marco regulatório deve fixar parâmetros gerais, não tratando de forma completa, e menos ainda exaustiva, da matéria cujas lacunas serão preenchidas pelo órgão regulamentador especializado. É o exercício da discricionariedade pela burocracia - margem de escolha entre alternativas possíveis - dentro dos limites impostos pelas instituições (subjetivamente) e normas formais (objetivamente). Isto a partir do conhecimento da realidade setorial no tempo e da maneira mais particular quanto possível. Também, decidida da forma mais próxima e negociada com os setores produtivos e os cidadãos.
Diferentemente das outras agências, a Anvisa atua não em um setor específico da economia, mas em todos os setores relacionados a produtos e serviços que podem afetar a saúde da população brasileira. Outra singularidade da Anvisa é sua competência tanto na regulação econômica do mercado (definição de preços e monitoramento do mercado) quanto na regulação sanitária (registros de medicamentos, por exemplo). Desempenha, assim, função intrinsecamente relacionada à mediação entre produtores e consumidores, tendo em vista que o uso de produtos e serviços por ela regulados pode causar graves efeitos à saúde da população, de forma abrangente.
A definição corrente de vigilância sanitária no Brasil é eminentemente legal. Ela recebeu tratamento direto na Constituição, que dispôs várias ações de sua competência no artigo 200 (atribuições do Sistema Único de Saúde). O conceito de vigilância sanitária contido na Lei nº 8.080, de 199 (Lei Orgânica da Saúde) ainda confere a esse campo um caráter abrangente de gerenciamento do risco (eliminar, diminuir ou prevenir riscos) que vai do controle de bens e serviços (direta ou indiretamente relacionados à saúde) à intervenção nos ambientes, processos e estabelecimentos. Tudo para garantir saúde e qualidade de vida à população.
Além de seu reconhecimento como uma das mais antigas práticas da saúde pública (o Código de Hamurabi e o Antigo Testamento contêm normas sobre a saúde, incluindo sanções), as ações de vigilância sanitária são historicamente inerentes ao papel do Estado de zelar pela saúde da população. A vigilância sanitária interfere, quer se queira ou não, na vida de todos, pois sua função reguladora obriga os particulares a se submeterem à supremacia do interesse público sobre o privado, corolário do moderno Estado Democrático de Direito. Daí ser impossível atribuir à Anvisa um papel menor na sociedade, restringindo seu poder regulador à fiscalização, por exemplo.
*Pedro Ivo Sebba Ramalho é doutor em ciências sociais pela Universidade de Brasília (UnB), servidor público na carreira de Especialista em Regulação e Vigilância Sanitária da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), onde ocupa atualmente o cargo de adjunto do diretor-presidente.

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